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Comportamento / MÊS DA MULHER

MÊS DA MULHER: Conheça Marcelle Fernandes Ferreira, a artista independente que ousou mudar a lógica de consumo através das bolsas feitas de roupas

A carioca de 28 anos é dona da marca Projeto Recicle que investe no upcycling

Bruna Goularte com supervisão de Marina Pastorelli Publicado em 25/03/2021, às 17h57

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Conheça Marcelle Fernandes Ferreira, a artista independente que ousou mudar a lógica de consumo através das bolsas feitas de roupas - Divulgação
Conheça Marcelle Fernandes Ferreira, a artista independente que ousou mudar a lógica de consumo através das bolsas feitas de roupas - Divulgação

Sempre com uma pessoa, uma criança ligada a moda. Minha mãe não deixava eu fazer modificações corporais assim, nem pintar o cabelo e eu me encontrei na moda como forma de pressão, né? E aí eu fui crescendo. A diferentona, bem esquisita. Na escola que não estudava, ninguém se vestia que nem eu e achava isso muito estranho”.

Parece até roteiro de história de filme. A adolescente que não se encontrava nos currículos escolares ou  que era tida como ‘esquisita’ pelos colegas, mas com o passar do tempo viu que eu lugar não era ali. Porém, a história existe e é a da Marcelle Fernandes Ferreira, 28 anos, designer, artista, figurinista e criadora do Projeto Recicle.

Tudo começou a mudar quando ela conheceu pessoas do movimento underground  - mas ela se considera uma filha do hip-hop - e viu que existiam pessoas expressando através das roupas e dos cabelos e pensou: “É sobre isso. Eu quero muito me expressar. Eu precisava me mostrar enquanto mulher de alguma forma e a forma que eu encontrei foi a roupa”.

O tempo passou e a temida obrigação de sair do colégio e entrar na faculdade também aconteceu com ela. Não queria fazer nada, mas foi numa palestra que era sobre design de moda e viu que aquilo que gostaria de fazer. Entretanto, tinha um problema: o preço das mensalidade, já que as melhores faculdades do Rio de Janeiro eram particulares. 

Em 2010, passou no vestibular da PUC-Rio, aos dezessete anos, e sentiu que foi uma revolução na sua vida: “Eu não imaginava que as pessoas tinham tanto dinheiro e existiam lugares como lá. Me abriu muito os olhos pra ser mais do que uma funcionária, mas por ser também dona de alguma coisa. De criar uma marca, um projeto”.

A partir daí, Marcelle começou a florescer o seu lado empreendedora. Começou a fazer brechó, vendendo roupas por dez reais. Inclusive, sua primeira sócia foi sua mãe que a ajudava em tudo. O tempo foi passando e a quantidade de roupa aumentando. 

Já era 2015, e mais um dilema surgiu: o que fazer com as roupas que sobram das doações e vendas? “Comecei a pensar em como eu poderia reaproveitar os tecidos, principalmente o jeans, que é uma das coisas uma das matérias-primas que mais poluem. Nisso, achei vários acessórios feitos de jeans feitos, eu fiquei muito feliz”, disse.

Coincidência do destino ou não, ela resolveu fazer um brechó em Niterói, sua cidade, e uma amiga, Victoria Lust, foi com uma pochete feita de jeans. Na mesma hora, ela achou incrível e mais ainda que sua amiga tinha feito. Pronto, as duas criaram o Projeto Recicle, em 2017.

No começo, Victoria costurava as bolsas e Marcelle fazia toda a logística de entregas, cortava moldes e o precisasse. No final de 2018, sua sócia a apoiou na costura e disse que se ela não fizesse as bolsas, sairia do projeto. A dinâmica mudou já que os estilos das suas eram diferentes e se complementavam ao mesmo tempo. 

Em 2020, Victoria acabou saindo do projeto para criar a sua própria marca e Marcelle continuou tocando. “Eu amo muito costurar bolsas. As pessoas ficam perguntando porque eu não costuro roupa e eu falo: ‘Gente, alguém tem que costurar bolsa. Todo mundo tem que costurar bolsa?’”. 

Uma das grandes marcas do Projeto Recicle são as bolsas feitas de camisa polo. A ideia surgiu em 2019 quando um amigo a procurou para reaproveitar a peça, mas só em 2020 ela fez a partir de bolsas de camisa de time e foi que uma virada para a marca. Aonde ela chegava era conhecida pela coleção do Flamengo, campeão da Libertadores e Brasileiro daquele ano.

As bolsas têm uma característica marcante de ter os botões da camisa como se fossem mais um detalhe e não desprezados como a maioria. Esse molde que é a frente foi uma das últimas. Ela contou que demorou um tempo até chegar nele.

"Tudo que eu tinha visto de referência, com camisa polo, era reaproveitando o tecido liso, não a bainha, gola e botão. Comecei a pensar nisso: 'Mas eu vou jogar o botão fora se tá escrita a marca?'. Do nada, desenhei na hora, porque não uso molde já que tento reaproveitar o máximo da roupa - e encaixou perfeitamente", explicou.

O Upcycling ou reutilização é o processo de uso de peças aparentemente sem mais uso  na criação de novos produtos, em outra coisa sem ser a que aquele produto ou partes dele foram inicialmente projetados.​

E é muito sobre a própria Marcelle. Todas as partes da bolsa são pensadas em ter um motivo e não apenas na estética.

"É o famoso 'dar um jeitinho, né?' É um dom, mas é um dom bem ancestral. Reaproveitar as coisas e não só descartar. As pessoas hoje em dia, elas descartam tudo e com muita facilidade, né? Acho que é a pior possível de você fazer qualquer coisa é descartado - seja sentimento, objetos,  pessoas. A gente tem que pensar,  tem que repensar, pensar de novo e ver a melhor forma que dá para colocar outra coisa", disse.

"Acredito muito que o upcycling é uma parte da minha personalidade. Eu consigo pensar, repensar que ele estaria em todos os lugares da minha vida", acrescentou.

Nem tudo são flores e nem sempre ser artista independente de moda é fácil - na verdade, é o contrário:"São muitos anos também pra você conseguir um reconhecimento, pra você conseguir sobreviver da tua arte, ganhar dinheiro com ela e não ser só um hobby. Depois disso, você tem que provar pras pessoas que a arte também não é só um hobby e é bem difícil".

Entretanto, ela também disse que não tem como escolher quando 'se nasce artista'. "É uma parada que pulsa muito forte dentro de você, sabe? É o que eu falei: Eu sou esquisita, né? Desde criança, eu sempre fui assim. Quando eu resolvi, assim, eu falei que iria viver de arte foi um momento bem decisivo". desabafou.

Marcelle comentou que artista é observar o que acontece no mundo e colocar para fora o que as pessoas estão sentindo, e acrescentou: "A arte também tem essa força de você assumir mesmo o que você é. Você não pode fingir que é outra pessoa, outra coisa".

Assim, não tem como negar que suas inspirações são as próprias pessoas: "Gosto muito de observar as pessoas ao meu redor, pessoas que eu admiro, a sociedade, no geral. Na  moda, a gente trabalha com tendência, né? Você tem que saber a tendência do momento, você tem que saber o que vai surgir daqui a alguns anos. Procuro não me inspirarem pessoas da moda, mas nas próprias pessoas".

Com a pandemia e o isolamento, o processo criativo foi afetado. Segundo ela, os dias não foram bons, pois ficou triste e bem para baixo com tudo o que estava acontecendo. "Eu não ia pra rua, não conseguia ver as pessoas. A internet, pra mim, é muito superficial, eu não consigo ficar o dia todo no Instagram. Gosto muito de ver as coisas acontecendo. A minha moda é muito da utilidade também. Gosto de ver como as pessoas tão usando as bolsas e dos que elas precisam", contou.

Mesmo a internet sendo superficial para Marcelle como pessoa, para o Projeto ela existe mais forte. Infelizmente, no Twitter, seu trabalho foi muito questionado por ela cobrar os créditos de uma outra pessoa sobre as referências.

"É muito difícil separar o pessoal do profissional. Estou até tendo ajuda com isso. Porque eu encaro como uma, uma parte de mim. Tudo que eu faço é uma parte de mim. Mas, assim os comentários negativos, eles, normalmente, não vem assim no meu dia a dia. Foi uma maluquice viver isso, mas o que me segurou legal mesmo foi a minha certeza de que eu entrego o meu melhor assim. Eu vivo para isso, eu vivo pra fazer arte, não só pra mim, mas gosto também de pensar e incentivar outros artistas a viverem de arte. Então, eu tenho muita certeza de que o meu papel como artista independente, eu faço na cena, por isso vários outros artistas me conhecem", desabafou sobre o episódio.

Inclusive, quem viu a cópia, nem foi ela.  Seus seguidores perceberam e mandaram para ela - o que mostra a marca que o Projeto Recicle já tem. "Essa é a minha certeza. Não vou falar que eu não fiquei triste. Claro que eu fiquei, porque é uma m**** você abrir o seu Instagram e ter um monte de gente falando um monte de b**** e você nem conseguir responder, porque as pessoas não têm argumento. Mas é isso que me segurou legal",  continuou.

Por ser artista independente, Marcelle sabe que é preciso ter uma rede de apoio e ajudar os outros:"Acredito que a arte não trabalha sozinha. Assim, não é só porque você faz moda que você tem que só trabalhar com gente da moda.  Acredito que arte é uma troca e que você tem que transitar em todos os âmbitos. É muito enriquecedor e transforma o seu trabalho em algo mais concreto".

Para Marcelle, ser dona de algo que ela mesma criou é maravilhoso. "São vários anos construindo e dando o meu melhor pra que as coisas fluam cada vez mais. Eu não quero ser mãe de criança, mas sou mãe da minha marca. É muito gratificante ver o projeto crescer. Me preenche demais enquanto artista e enquanto mulher preta também. Porque eu acredito que as mulheres pretas são as mais negadas a viver de arte. Muito mais do que os homens pretos, por exemplo, né? Então, ser mulher preta na arte é uma resistência e é uma resistência maravilhosa que por mais que a gente sofra e seja ignorada, muitas vezes. É maravilhoso, porque você acha muito apoio também. A maior parte das minhas amigas são mulheres pretas e artistas. Então, mulheres que talvez eu não conhecesse se não fosse a arte. É muito gratificante ver o Projeto crescer e também levar outras pessoas juntos".

Sobre ajudar o outro, ela foi ainda mais além: "A gente tem essa responsabilidade de inspirar e ensinar também as outras pessoas a fazer o que você nasceu pra fazer. Cada ser humano nasceu pra fazer alguma parada e que é especial em alguma coisa. Você tem que passar isso pras outras pessoas, sabe? Por isso que você veio com esse dom. Não só ganhar dinheiro, porque o dinheiro é o resultado num bom trabalho. Ele não me anula".
O que é o Projeto Recicle?
O Projeto Recicle é uma marca de upcycling independente e artesanal. Ele busca enaltecer e fazer ser possível a expressão através da moda para dar autenticidade e pertencente para algum lugar. Segundo ela, todo mundo é muito autêncio, mas a sociedade que padroniza as pessoas. O Recicle é uma marca para além do vestuário.