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LGBT / COLUNAS

Stonewall não é aqui, por Neon Cunha

"Além das blitz nas ruas do centro e em bairros nobres de São Paulo, existiam  também as "batidas" nas casas noturnas com a justificativa de procurar suspeitos."

Ezatamentchy Publicado em 28/06/2024, às 13h57

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"A Rebelião de Stonewall foi uma série de manifestações violentas e espontâneas" - Divulgação
"A Rebelião de Stonewall foi uma série de manifestações violentas e espontâneas" - Divulgação

Por Neon Cunha**

A Rebelião de Stonewall foi uma série de manifestações violentas e espontâneas de membros da comunidade LGBTQIA+. Seu estopim aconteceu nas primeiras horas da manhã de 28 de junho de 1969, contra uma invasão da polícia de Nova York no bar Stonewall Inn, localizado no bairro de Greenwich Village, em Nova York, nos Estados Unidos. Esses motins são amplamente considerados como o evento que culmina na formação e fortalecimento do movimento de luta pelos direitos LGBTQIA+. Dentro deste cenário, é preciso trazer visibilidade especial às mulheres que participaram deste processo. São mulheres de várias identidades de gênero, etnias e orientações sexuais, e que tiveram papéis fundamentais neste confronto definidor da luta pelos direitos LGBTQIA+.

Podemos citar cinco dessas mulheres. Juntas, formam ajudam a compor uma espécie de linha cronológica dos eventos. Stormé DeLarverie, “a guardiã das lésbicas”, é a pessoa que primeiro reagiu à batida, iniciando a revolta, ao dar um soco em um dos policiais. Marsha P. Johnson, reconhecida hoje como uma mulher trans, e que também foi uma das drag queens mais conhecidas de Nova York, foi uma das primeiras a partir para a briga, logo após DeLavrie. Foi Sylvia Rivera, uma travesti bissexual, quem primeiro atirou uma garrafa contra a polícia, dentre a multidão que assistia da calçada a ação da polícia dentro do Stonewall Inn. Rivera fundou organizações ativistas, destacando-se o grupo STAR - Street Tranvesttite Action Revolutionaries (Revolucionários pela Ação de Travestis de Rua, em livre tradução), criado junto de Marsha, sua amiga. Miss Major Griffin-Gracy, uma das lideranças nos embates com a polícia, foi presa, tendo sua mandíbula fraturada durante o período em que esteve sob custódia. Hoje, Griffin-Gracy atua como diretora executiva de um grupo que auxilia pessoas trans encarceradas.

"O dilema passou a ser fugir dos pontos críticos e cair nas operações organizadas pelas polícias"


Por fim, temos Brenda Howard, mulher cis bissexual. É dela a ideia de celebrar o orgulho LGBTQIA+ como o conhecemos hoje, no formato de paradas. A importância dos eventos que aconteceram nesse período e lugar, bem como dessas e tantas outras mulheres envolvidas, fez com que, em 24 de junho de 2016, o então presidente norte-americano Barack Obama oficializasse o palco principal da revolta, o bar Stonewall Inn, como um monumento nacional.

Mas, ainda que Stonewall seja este marco indiscutível, nem tudo é apenas história vinda do hemisfério Norte. No Brasil, as mesmas situações que lá culminaram nas revoltas aconteciam. Os policiais brasileiros faziam rondas sistemáticas para ameaçar e prender mulheres trans, travestis, gays e lésbicas, chegando a prender 1,5 mil pessoas apenas na cidade de São Paulo. Os defensores da moral e dos bons costumes, que ainda perduram nas figuras públicas e políticas, endossavam as operações policiais que perseguiam sistematicamente a população LGBTQIA+ no centro de São Paulo, entre o final da década de 1960 até meados dos anos 90, já que a primeira dessas rondas data de 1968, por conta da visita oficial da Rainha Elizabeth 2ª a cidade.

Os militares viam as pessoas LGBTQIA+ como particularmente indesejáveis, ao ponto de o preconceito e a discriminação se tornarem não apenas dizeres publicamente anunciados: a natureza e o grau da perseguição contra esta população, seja por atuação ou omissão do Estado, foi se tornando institucionalizado.

A polícia quis limpar o centro da cidade. Em declarações a jornais da época, o delegado Wilson Richetti não fazia questão de esconder este objetivo. Ele afirmava que era preciso “limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados'”, fazendo coro com a voz de pessoas como Jânio Quadros, prefeito de São Paulo em 1986. Com o advento do HIV/Aids, travestis chegavam a cortar os pulsos para saírem mais rápido da prisão ou mesmo evitá-la.

"Os defensores da moral e dos bons costumes, que ainda perduram nas figuras públicas e políticas, endossavam as operações policiais"


Durante os dias de reclusão,  muitas ficavam sem comida e eram forçadas a limpar a cadeia, chegavam ao ponto de tentar a morte por meio de suicídio.  A Polícia Militar com apoio da Polícia Civil organizou algumas operações para a retirada de travestis e mulheres trans do centro de São Paulo, tais como a “Operação Tarântula” e “Operação Arrastão”.  

A população reclamava que havia aumentado muito o número dessas pessoas na região central e também em algumas outras regiões periféricas da cidade, fugindo de áreas consideradas perigosas ou mesmo pontos de extermínio. O dilema passou a ser fugir dos pontos críticos e cair nas operações organizadas pelas polícias. Em alguns lugares da Grande São Paulo, chega-se ao cúmulo de jovens classe média praticarem tiro ao alvo ou espancamentos. Abaixo-assinados também são constantes nos comandos da Polícia Militar. Além das blitz nas ruas do centro e em bairros nobres de São Paulo, existiam  também as "batidas" nas casas noturnas com a justificativa de procurar suspeitos.


O cissexismo (neologismo usado para condensar duas ideias colonizadoras, onde uma opera enquanto norma governamental (cisgeneridade) e a segunda atua enquanto carácter de dominação, hierarquização e inclusão e diferença (sexismo). Estes dois conceitos vão agir sobre processos de exclusão sobre o corpo que escapa à norma. A crença de que o gênero de pessoas cisgêneras é de alguma forma mais legítimo do que aquele de pessoas transgêneras, aliado à misoginia, são marcadores importantes no apagamento do engajamento da população trans nas conquistas por direitos LGBTQIA+.

O reconhecimento do Brasil como o país que mais assassina  e violenta pessoas que fogem da (cis-hétero) normatização, somado à interseccionalidade e tangenciado pela categoria analítica da raça, classe e gênero, constituem uma junção de fatores que ampliam graus de exclusão e precarização de muitas vidas.

A forma como mulheres trans e travestis são privadas do reconhecimento social nas conquistas e no enfrentamento à violência com a população LGBTQIA+ brasileira não se dissocia da opressão produzida pela invisibilidade de quem não pode ocultar quem se é, e denuncia que enquanto Marsha, Silvya, Stone, Miss e Brenda são celebradas,  as nossas brasileiras e latino-americanas, em sua grande maioria, são apagadas.    

*Texto original publicado na íntegra em: Ponto de debate 21: Um vácuo “cis” na história e a emergência do corpo trans, pela Fundação Rosa Luxemburgo.

**Neon Cunha é uma mulher negra, ameríndia, transgênera - nesta ordem de importância. "Minha primeira formação é na faxina, com minha mãe", diz Neon, que se tornou uma das vozes LGBTQIAPN+ mais importantes do país. Em 2016, Neon pediu à justiça brasileira o direito à morte assistida, caso não lhe fosse permitido o direito de mudar nome e gênero em seu registro, sem que fosse submetida aos processos abusivos que eram exigidos até então. Seu processo abriu caminho para que toda pessoa transgênera pudesse fazer o mesmo. Publicitária e diretora de arte, Neon é ativista independente, sendo a primeira pessoa transgênera a discursar na OEA - Organização dos Estados Americanos, braço da ONU nas Américas, à convite do Geledés - Instituto da Mulher Negra. Entrou para o serviço público ainda no início da adolescência, como estratégia de sobrevivência, ao mesmo tempo que presenciava as operações de extermínio contra suas semelhantes no centro de São Paulo, nos anos 1980. Seja na moda, onde colabora com a marca Isaac Silva e com o Instituto Casa de Criadores, ou em sua carreira política, tendo sido candidata à deputada estadual em 2022 e obtido 35 mil votos, sua trajetória é marcada pela busca da humanidade e das utopias como direitos e possibilidades a todas as pessoas. "Lugar de inspiração é pertencimento, e não é fronteira. Esse lugar, os sonhos são maiores que os medos, é o não limite de ser uma mulher negra", disse Neon em depoimento ao Itaú Cultural, quando nomeada ao prêmio Milu Vilela, em 2022.

Por Ezatamentchy