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Comportamento / ENTREVISTA

"Racismo aparece independente do grau na carreira", conta modelo sobre caso envolvendo cabeleireiro

Em entrevista exclusiva à Máxima Digital, a modelo Mariana Vassequi debasafa sobre caso de racismo envolvendo o cabeleireiro Wilson Eliodório e mulheres negras na moda

Bruna Goularte com supervisão de Marina Pastorelli Publicado em 03/09/2020, às 10h00

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Em entrevista exclusiva à Máxima Digital, a modelo Mariana Vassequi debafa sobre caso de racismo envolvendo o cabeleireiro Wilson Eliodório e mulheres negras na moda - Reprodução/ AGNCY Brasil
Em entrevista exclusiva à Máxima Digital, a modelo Mariana Vassequi debafa sobre caso de racismo envolvendo o cabeleireiro Wilson Eliodório e mulheres negras na moda - Reprodução/ AGNCY Brasil

Nos últimos dias, mais um caso de racismo viralizou nas redes sociais. Provavelmente, o  vídeo de uma cena de preconceito em um salão de beleza passou pelo seu perfil. Nele, a modelo Mariana Vassequi, 25, tem os cabelos crespos tocados pelo cabeleireiro das famosas Wilson Eliodorio enquanto ele se acha no direito de fazer comentários sobre os seus fios.

“Esse cabelo ou essa pessoa é um filhote de patrão, porque o patrão comeu uma escrava e gerou isso aqui.” e “Esse cabelo é um cabelo que vem do morro, e agora essas mulheres têm dinheiro e agora elas querem ir em salão chique, por isso nós temos que saber mexer com elas.”. Foram as frases que o profissional usou ao mexer nos cabelos da modelo.

A cena é desconfortável para quem vê, mas é ainda pior para quem vivenciou. O racismo possui várias formas de se expressar, entretanto, em todas possui uma característica principal: é racismo. Em entrevista exclusiva para a Máxima Digital, Mariana contou sobre o caso, carreira na moda, cabelos e ancestralidade como mulher negra.

A carreira de modelo da carioca não é longa, iniciou há apenas quatro anos, em 2016. Tudo começou quando decidiu mudar seu objetivo de vida, que era a carreira acadêmica na sua graduação em ciências sociais, para descobrir a fotografia. 

Dedicando-se a modelar, Mariana não esperava que fosse por um caso de racismo explícito. Ela, que estava trabalhando para divulgar produtos de uma marca de cosméticos especializada em cabelos afro, viu suas características serem atacadas. 

O vídeo não foi nem gravado e nem postado pela Mariana. Inclusive, ela nunca chegou a postá-lo em suas redes sociais. A gravação foi feita por um dos convidados e a partir daí, a grande repercussão sobre o caso atingiu todos os envolvidos. 

“É um susto e muito triste pela circunstância. Se fosse um vídeo meu desfilando, ia ficar muito feliz. Ia falar: ‘Meu trabalho foi reconhecido, as pessoas estão compartilhando porque gostaram’, mas foi uma situação de humilhação. Fiquei com vergonha no começo”, confessou.

O racismo na moda não se apresenta apenas nas falas. Principalmente, nas modelos negras, a diferença de cachê, a escolha por sempre as mesmas, apagamento de característica, como o cabelo, e controle dos corpos são barreiras enfrentadas. 

A modelo fashion é vista como alguém que precisa ter o cabelo alisado ou raspado e muito pouco com os cabelos volumosos e naturais. “Por que não pode? O racismo se apresenta em menos oportunidades de modelos negras”, questionou Mariana ao falar do baixo número de modelos nos trabalhos, outra problemática.

“Já cheguei em teste e a pessoa falou na minha cara que eu não poderia ser modelo, porque eu sou negra. Você não tem nem a oportunidade de mostrar o seu potencial. O racismo aparece para a modelo independente do grau na carreira dela”, ressaltou.

A decisão de falar sobre as situações têm um propósito muito maior para Mariana: “Vale a pena, porque eu penso que não é só sobre mim. Se eu fosse mais egoica, ficaria em silêncio. Não é sobre mim, pelo contrário, é sobre outras modelos e profissões que sofrem racismo. É importante falar, mesmo que custe, não tem preço. Se deixar uma marca e impactar positivamente para que outras pessoas não sintam no futuro, vale a pena".

As marcas da situação não foram apagadas com o pedido de desculpas ou nota de esclarecimento para ela. "Um pedido de desculpas nunca foi e nunca será o suficiente. Não só em situação de racismo, mas o opressor querer tomar o lugar da vítima. Vejo como a inversão de papéis de dias. Assim, você está transferindo a sua culpa na sua responsabilidade, de ter sido racista para terceiros, enquanto a responsabilidade é só sua. O pedido de desculpa não apaga o passado. Racismo não é erro, é crime.”.

Estática, em determinado momento do vídeo, Mariana tentava processar o que aconteceu e entender a linha como pessoa e modelo. Afinal, a profissão é vista, muitas vezes, como bonecas humanas. “Naquele momento eu me sentia um objeto. Eu me senti uma pessoa que não estivesse nem ali, mas os meus sentimentos estavam.”, confessou.

"Acontece um silêncio por medo de não conseguir trabalhos. No momento, não estou com esse medo. Acredito que se uma marca é conivente, eu que não vou querer trabalhar se ela tem essa postura”, acrescentou.

O episódio despertou uma dúvida nela: Será que como modelos não podemos falar? Esse silêncio é muito abusivo. No momento fiquei em silêncio, chorando por dentro, porque imaginei que seu falasse alguma pudessem ir contra mim. Só tinha eu e a uma modelo negra ali. Outra coisa, se as pessoas estão se sentindo tão confortáveis, é porque demostra que a omissão foi uma forma de compactuar”, contando que manteve a postura profissional na situação mesmo querendo sair.

A modelo também  falou sobre a vanglorização de maquiadores e cabeleireiros que sabem trabalhar com as características de mulheres negras, tais como: simplesmente, um subtom para pele para que ela não fique cinza ou não deformar o cabelo afro. "Esses profissionais de beleza que trabalham com moda é obrigação saber o que é um cabelo chateado e maquiar todos os tipos de pele. Vai ter modelos de todas as cores, mesmo que em minoria, ele precisa estar preparado para atender o público. Não deveriam receber 'biscoito' por isso. Se eles não sabem, está antiquado e não conhece a demanda do próprio país.", desabafou.

A cena ainda é emblemática em outros pontos: os toques nos fios, os comentários falando sobre a escravização dos povos negros e até do abuso sexual das mulheres negras escravizadas. Tudo em defesa do “ser engraçado”.  Mariana afirmou que vai em busca do seus direitos para tratar legalmente do caso. 

Sobre a redução de sua ancestralidade, ela comentou sobre o processo de miscigenação do Brasil: “As mulheres escravas eram violadas e não tem nada de romântico na miscigenação. É também muito machista. Se falar que meu cabelo está opaco, isso é técnica, mas quando usa outro termo não é nada técnico, é racismo”.

A relação da mulher com os cabelos,  principalmente da mulher negra, é muito maior que beleza. É resistência. Foram anos de opressão, procedimentos estéticos de alisamento, apagamento de características e luta para aceitação dos fios como eles são. Mariana, mesmo, passou pelo processo de transição capilar. No processo, até raspou careca para se conhecer ainda mais. "Ouvi a infância inteira que meu cabelo era duro, alisei e cortei por uma questão de identidade. Eu amo o meu cabelo do jeitinho que ele é", afirmou sobre o autoconhecimento.

Inclusive, a partir do seu processo de transição e do novo visual, que Mariana aceitou os convites para modelar e ingressou na carreira. "Careca, me descobri modelo e vi na fotografia uma forma de empoderamento", disse. Contudo, ainda conciliava as duas profissões.

O caso fez com que ela sentisse união novamente da Mariana modelo e cientista social: "Não vou me calar mais, porque eu sei que existe racismo. Vou unir as duas coisas e vou falar".

Nos últimos meses, após a morte George Floyd, segurança asfixiado por policiais brancos em uma abordagem em Minneapolis, nos Estados Unidos, o movimento Vidas Negras Importam - Black Lives Matter - ganhou impulso maior nas ruas e redes sociais de todo o mundo. 

Mariana comentou sobre a importância de falar e entender o racismo como crime: "Ele é muito perigoso e, muitas vezes, velado. Nunca deve passar impune. Não existe racismo pequeno e racismo grande. É tudo racismo. As pessoas têm que falar mesmo. Alguns falam: 'Eu já estou cansado'. Imagina eu que sou negra? A gente está cansado de sofrer, de morrer, de perder oportunidades, de ser humilhado.".

Para o futuro, no entanto, a modelo tem perspectivas positivas: "Espero poder corrigir a minha imagem para que as pessoas não associem o meu trabalho apenas à um ato de racismo. Queria falar para quem passou por uma situação ruim que as pessoas continuem sonhando. Continuo com a minha projeção de carreira, continuo sonhando, apesar do ato triste. Então fica para todo mundo essa projeção de esperança e que as pessoas não se calem.

Entenda 

O crime de racismo se difere da injúria racial. Enquanto a injúria racial consiste em ofender a honra de alguém valendo-se de elementos referentes à raça, cor, etnia, religião ou origem, o crime de racismo atinge uma coletividade indeterminada de indivíduos, discriminando toda a integralidade de uma raça. Diferente da injúria racial, o crime de racismo é inafiançável e imprescritível.

A injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa, além da pena correspondente à violência, para quem cometê-la. Já o crime de racismo, previsto na Lei n. 7.716/1989,  implica conduta discriminatória dirigida a determinado grupo ou coletividade e, geralmente, refere-se a crimes mais amplos.

A população negra representa 54% dos brasileiros e movimenta expressivos 1,7 trilhão de reais por ano no país, segundo dados do Movimento Black Money (MBM). No entanto, Mariana falou sobre marcas "usarem os corpos negros e não falarem sobre a luta racial".

"Você quer comercializar o meu cabelo, mas você não quer falar da luta em torno? E nem respeita? Não tem como falar de cachos sem falar da questão racial", perguntou.

Wilson Eliodorio é conhecido por ser cabeleireiro de famosas como Taís Araújo, Elza Soares, Iza, Cris Viana, Gaby Amarantos e Naruna Costa. O nome dele sempre circulou como especialista em cabelos crespos e cacheados. 

Após a repercussão negativo, o beauty hair usou suas redes sociais para se pronunciar: "Eu erro e o fato de ser negro não me isenta do erro, porque assim como você nasci nesse país racista. Sim, sofri preconceito, racismo. E não aprende, não aprendeu que não se repete isso com o irmão. Mesmo negro, bicha preta, repetiu todas as merdas que ouviu e ouve todo dia. Perpetuando essas piadas horrorosas que disseminam ódio, machismo, racismo, misoginia. Eu trabalho com o cacho, entendo o cacho, o crespo. Sou muito orgulhoso de inspirar mulheres de assumir seu cabelo natural, crespo",

"Tenho muita culpa e muita vergonha de ter dito o que disse. Principalmente pela dor que causei, mas repito: ser preto não me faz imune da construção racista desse país. Estou em reeducação, assim como tanto de nós. Desculpa. Desculpa Mari, desculpa Ruth", finalizou.

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